‘Série Milícias’: em 40 anos, grupos criminosos cresceram e diversificaram as atividades no Rio | Rio de Janeiro
Quando se fala na exploração criminosa de territórios no Rio não existe vácuo de poder. Se é ocupado pela milícia, o tráfico de drogas tenta tomar. E onde o tráfico domina, a milícia quer entrar.
Um problema que as autoridades não conseguiram resolver, e quem sofre são os moradores de comunidades, que temem a insegurança.
“Viver sem paz, sem segurança, sem expectativa”.
“Tendo o seu poder de ir e vir cada vez mais limitados”.
“É horrível viver assim, viver com medo, tendo que sair e não saber o que vai acontecer.”
O Jornal Hoje começou a exibir nesta segunda-feira (15) uma série especial sobre a ação das milícias no Rio de Janeiro. No primeiro episódio, a equipe de reportagem mostra como surgiram os grupos paramilitares, que já têm mais de 40 anos, e a evolução desse poder paralelo até hoje, com a extorsão de moradores e a disputa de território com o tráfico de drogas.
As milícias existem no Rio há mais de quatro décadas. A favela de Rio das Pedras, vizinha à Barra da Tijuca, é considerada o berço da milícia carioca.
“A milícia começa, e todo mundo também fala isso, como anteparo à violência exacerbada do tráfico de drogas. Ou como alguns políticos falavam à época: autodefesa comunitária, que era uma visão romanceada que hoje ninguém mais tem coragem de sustentar isso”, fala a promotora Simone Sibilio.
O delegado Gustavo Rodrigues diz que os paramilitares articularam uma força de defesa contra investidas de traficantes.
“Ela era valorizada pela população local como os expulsores, né? As pessoas bem feitoras que tiraram o tráfico de drogas na localidade, e passa a instituir a chamada polícia mineira. São aqueles brabões, os policiais de folga que montam grupos para expulsar determinadas facções de tráfico e aí proíbem o roubo, proíbem outros delitos na localidade, passam uma sensação inicial de segurança”.
A polícia mineira foi o embrião da milícia, mas não tem nada a ver com o estado de Minas Gerais. Segundo especialistas, esse termo vem da prática de mineirar, que seria encontrar negócios ilegais e ilícitos para obter lucro por meio de extorsão.
“Primeira linha de continuidade entre grupo de extermínio e milícia são servidores públicos, que na sua grande maioria que sustentam a estrutura. Então, vão fazer operações, vão matar, torturar, fazer tudo que a gente conhece da prática dessa estrutura”, fala o professor de Ciências Sociais da UFRRJ, José Cláudio Souza Alves.
No início dos anos 2000, a milícia já chamava atenção. Um levantamento da Secretaria de Segurança Pública e da Prefeitura do Rio mostra que milícias formadas por policiais e bombeiros estão se espalhando por áreas pobres da cidade.
Nesses mais de 40 anos de atividades no Rio, a milícia foi crescendo, conquistando territórios e ampliando os negócios e o domínio sobre os moradores. Criada com a falsa promessa de defender a comunidade do tráfico, hoje a milícia está cada vez mais parecida com o grupo rival.
Milicianos e traficantes extorquem dinheiro, vendem drogas e disputam territórios. Os confrontos violentos pela dominação das comunidades se acirram a cada dia.
A chamada Grande Jacarepaguá, na Zona Oeste, está no meio dessa disputa entre bandidos. É a região mais populosa do Rio, com 653 mil habitantes, segundo o IBGE.
Até meados de 2022, o tráfico dominava apenas uma grande favela na região: a Cidade de Deus. As outras cerca de 30 localidades da área eram exploradas pela milícia ou eram locais em que os traficantes não impunham sua força.
Hoje, milicianos têm o controle de parte de três localidades. Em menos de 2 anos, o tráfico dominou todo o restante.
“Parece que as facções de droga, que inicialmente eram dedicadas ao comércio de drogas ilegais, meio que aprenderam com a milicia que, uma vez também que eles têm um controle do território deles, também podem explorar a internet, o gás, cobrar taxas de extorsão, e a gente tá vendo então esse processo aí de uma multiplicação de negócios”, fala a professora da Fundação Getúlio Vargas, Joana Monteiro.
Para o promotor e coordenador do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público, milícia e tráfico, atualmente, atuam de forma parecida.
“Uma aprendeu com a outra o que poderia ser feito para cada vez mais aumentar o lucro. Então, é possível hoje você observar o tráfico também exercendo o monopólio de atividades que até então era um típicas de milícia, como também a própria milícia exercendo por sua vez ou permitindo a questão da realização do tráfico de entorpecente.”
“Hoje a milícia faz de tudo. E há algum tempo, já associado ao tráfico de drogas, você tem locais onde funcionam os dois em tempo integral, tem locais que funciona durante o dia uma organização, à noite outra, e essa é uma realidade do Rio de Janeiro. Por isso que hoje a gente encontra essa disputa por território. Território hoje é sinônimo de receita”, diz o secretário de Segurança Pública do Rio, Victor Santos.
Na disputa por território, os moradores são ameaçados.
“Pedindo para todo mundo para abrir celular, todo mundo tem que abrir quando vai entrar. Eles tomam celular das pessoas, se abrir e tiver conversa e acharem que é miliciano toma paulada. Bate na gente e manda meter o pé.”
Médicos executados na Barra
“É como se a população tivesse uma única alternativa: ou tráfico ou a milícia. Como se a população não tivesse o direito de ter a liberdade e segurança. Os dois, né? Não é uma dicotomia. É preciso que os dois caminhem juntos, e a segurança dada pelo estado. E a liberdade dada pelo estado”, defende a promotora Sibilio.
O secretário de Polícia Civil do Rio disse que tem intensificado as ações para prender os criminosos.
“Nós prendemos nos últimos anos 22 chefes de milícias, líderes de milícia, todos os líderes de milícias foram presos, que assumiram as organizações paramilitares. Todos eles, à exceção de apenas um que foi preso pela Polícia Federal, todos eles foram presos pela Polícia Civil do Rio de Janeiro”, diz Marcus Amim.
Um levantamento das polícias do Rio identificou quase 1700 lugares no estado onde a população vive sob a exploração de grupos armados.
“O morador não pediu pela violência. Ele não pediu por essa guerra. Ninguém quer a insegurança, de poder abrir sua porta e ver tiros, ver corpos na rua, ver seus filhos sendo criados naquela situação. E é uma guerra que ele acaba financiando porque ele é obrigado, seja o empresário que fornece o serviço de internet, seja o dono do mercadinho que compra o produto para vender para o consumidor final que é o morador. E com isso eles mantêm esse ciclo vicioso, o ciclo da ambição, o ciclo da construção do mal dentro da sua própria casa”, fala um morador.
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