“A cachaça já é uma verdade”, diz especialista

Isadora Bello Fornari –

O que fez a paulistana Isadora Bello Fornari sair de São Paulo para morar em Salvador foi a paixão por um símbolo nacional: a cachaça, bebida que ganhou um dia de reconhecimento, o próximo dia 13. Especialista no assunto, Isadora abriu mão da carreira como publicitária para estudar sobre a produção da bebida e se tornou um dos maiores nomes quando o assunto é pesquisa sobre o universo etílico brasileiro. Em Salvador há três anos, ela assina a carta de drinks do restaurante Origem na capital desde 2018 e participa de um novo momento na coquetelaria nordestina. “Quando eu cheguei aqui, eu só via roska nos cardápios. Hoje, qualquer bar de Salvador tem, no mínimo, dois drinks autorais”, comemora. Isadora é especialista em destilados pela WSet Spirts Expert, maior instituição de ensino de bebidas do mundo, e é a única jurada brasileira da competição internacional Spirits Selection. Para onde viaja, Isadora leva a palavra da cana. “Todo destilado conta uma história e a cachaça entrega muitas características de como foi feita e de onde ela foi feita”, diz. Nesta entrevista, a especialista fala sobre como anda a produção local, o futuro da cachaça na coquetelaria e as origens do preconceito contra a bebida.

Como começou a sua relação com as bebidas?

Eu comecei cedo a trabalhar em bares. Sou publicitária, mas só trabalhei seis anos nessa área, logo depois comecei a trabalhar num bar que, a princípio, vendia cerveja, mas o dono gostava bastante de cachaça. Eu comecei a estudar harmonização por curiosidade e fui vendendo a cerveja harmonizada com a cachaça. Foi dando certo. Mas, mesmo antes, meu pai sempre gostou muito de beber e me explicava o que ele sabia sobre cada bebida. Logo de cara eu me encantei pela cachaça. Eu comecei a estudar e o meu universo de destilados se expandiu bastante. Depois, eu comecei a dar aula para bartenders, fazer palestras e consultorias. Nas minhas viagens a trabalho, eu notei que faltava algo que simbolizasse o Brasil de forma mais clara. E a cachaça simboliza toda a versatilidade, variedade e diversidade que a gente tem. A cachaça também mostra muito bem esse costume que o brasileiro tem de rejeitar coisas antes mesmo de conhecer.

Você costuma dizer que a cachaça é um veículo da cultura brasileira. Por quê?

Todo destilado conta uma história e a cachaça entrega muitas características de como foi feita e de onde ela foi feita. E a gente tem cachaça produzida pelo Brasil todo. Então, quando você bebe uma cachaça, dá para entender um pouco o perfil daquela bebida, qual é o tipo da cana, se houve o uso de amido, milho, arroz… Por exemplo, as cachaças da Paraíba e de Pernambuco, em geral, têm um paladar um pouco mais seco. Se a gente se permitir sentir, vai receber toda a história e características da bebida. É como se estivéssemos conhecendo uma pessoa. Existem cachaças mais delicadas, outras mais potentes, algumas têm muitas camadas. O Brasil tem mais de 36 madeiras em que é possível fazer o trabalho de envelhecimento da bebida, além da diversidade geográfica, de vegetação, de clima. É um negócio fora do comum.

O que explica, então, o estigma da cachaça ser uma bebida de pouca complexidade?

Quando a Família Real Portuguesa chegou a Salvador, em 1807, houve uma mudança comportamental enorme. Era um desejo da Coroa vender os costumes de Portugal para o Brasil. A construção de Salvador foi muito baseada na cidade do Porto. A reconstrução de Portugal depois do terremoto que abalou Lisboa em 1755, por exemplo, foi toda financiada com dinheiro de venda de cachaça. O comércio da bebida aumentou muito para que Portugal pudesse ser reconstruído. Eu acredito que se a Família Real não tivesse chegado aqui, a gente estaria mais próximo do comportamento que os peruanos e chilenos têm com o pisco, ou do que os mexicanos têm com a tequila. Um respeito, sabe? O cara prefere tomar um uísque de má qualidade a servir uma boa cachaça, que é muito mais acessível, isso é uma loucura. A ignorância acaba sendo uma multiplicadora desse comportamento preconceituoso.

Como é possível mitigar esse preconceito?

É possível fazer a pessoa abrir uma porta para um conhecimento sensorial quando a gente inclui um ingrediente que ela gosta. Quando o chef Fabrício Lemos me convidou, há seis anos, para fazer a carta de drinks do restaurante Origem, por exemplo, eu entendi esse poder. Porque com os drinks, a gente consegue diminuir a percepção negativa do cliente de uma forma mais amigável. O drink é, realmente, uma ferramenta de transformação. Então, em todas as frentes que eu posso transformar e fazer as pessoas olharem para os ingredientes brasileiros, seja a cachaça, sejam os fermentados ou outros destilados que já estão fazendo aqui na Bahia, eu lanço mão. Porque aí a gente consegue transformar de uma forma muito mais convidativa e menos agressiva. Não dá para ensinar a tabuada de nove para uma criança de dois anos. Ela precisa passar por outras tabuadas antes. E paladar e sentido são a mesma coisa: para desenvolver, a gente começa por meio de um drink, por exemplo, e faz com que a pessoa fique mais acessível a outras frentes de sabor.

Você nasceu em São Paulo e morou boa parte da vida na capital paulista. O que lhe trouxe a Salvador?

Eu nasci em São Paulo, mas foi um erro geográfico. Eu não me sinto paulista, só o meu sotaque que me entrega. Eu me mudei para Salvador porque eu estava fazendo muitos trabalhos aqui. Eu passava três semanas do mês aqui, então, não fazia mais sentido morar em São Paulo. Logo depois da pandemia, me mudei oficialmente para Salvador. A ideia é realmente ajudar o Nordeste a desenvolver a coquetelaria com os ingredientes locais de uma forma perene. O que me traz para Salvador é justamente essa movimentação da coquetelaria aqui. A movimentação de Salvador na gastronomia é algo que já não é mais uma brincadeira. Salvador é a capital gastronômica do Brasil e a coquetelaria tem que acompanhar. Porque quando eu cheguei aqui, eu só via roska nos cardápios. Hoje, qualquer bar de Salvador tem, no mínimo, dois drinks autorais.

Como anda a produção de cachaça na Bahia?

O Nordeste foi uma região com forte produção de cana-de-açúcar e, com o fim do ciclo da cana, em meados do século 17, os canaviais ficaram aqui. Aí sim, começou a produção de um destilado à base do caldo de cana fresco, que é o que a gente conhece hoje como cachaça. Porque antes a bebida era produzida à base do melaço, que é o subproduto da cana. Esquenta-se a cana, se faz uma redução, então surge a rapadura e é adicionada água no que fica no tacho para depois fermentar e fazer a destilação. Esse era um processo comum, mas com a queda da produção de açúcar e com a expulsão dos holandeses, o preço do produto caiu muito e todos esses canaviais ficaram ociosos. Mas, ainda assim, aqui, principalmente na Chapada e no sul da Bahia, existem produtores bem expoentes de cachaça. Inclusive, a primeira cachaça orgânica do Brasil foi a Serra das Almas, aqui da Bahia. Eles têm um trabalho que vai além da produção. Eles multiplicam esse conhecimento do agroflorestal, da cachaça orgânica, o que é muito bacana.

Esse é um diferencial do produtor baiano?

Sim. Eu observo que os produtores da Bahia têm uma relação muito mais próxima com o ambiente onde estão inseridos. É um olhar para o que está em volta que é maior do que eu percebo em outros estados. São Paulo virou o maior produtor de cachaça do Brasil muito por causa das indústrias que têm lá, mas eles viraram um McDonald’s da cachaça. É muito fabril. Aqui na Bahia ainda existe uma relação com a natureza, com o indígena, com o local, uma coisa mais alegre, mais jovem. Os produtores baianos estão olhando cada vez mais para esse diferencial e não tentando trazer um diferencial ensaiado que a maioria dos produtores geralmente tenta trazer. Não adianta dizer que a cachaça é super premium se você coloca na boca e a bebida é um negócio horrível.

Qual é o futuro da cachaça?

A cachaça já é uma verdade. Hoje, não existe nenhuma carta de drinks que não tenha cachaça. Quando eu comecei, há 16 anos, não tinha. Tinha caipirinha e olhe lá! As pessoas já romperam bastante esses preconceitos com cachaça, claro que ainda existe um caminho a ser desenvolvido, mas eu vejo que tem algumas marcas que já estão se posicionando e trazendo esse valor. A Matriarca, aqui da Bahia, é um exemplo de uma cachaça que entrega algo único que vai além dos mitos. Porque a cachaça traz também muitos mitos. “Não pode tomar cachaça gelada”, “cachaça envelhecida é melhor do que a branca”, “cachaça que passou 20 anos enterrada é muito melhor”. São coisas que a gente vai descobrindo que não são verdades. Cachaça quente aqui na Bahia não faz sentido. Você vai queimar, porque a temperatura do ambiente aumenta a percepção. Eu, por exemplo, tomo uma dose de cachaça com uma pedrinha de gelo e fico apreciando por bastante tempo. A bebida é sua e você toma do jeito que quiser.





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