entenda a doença que fez jovem buscar eutanásia
O caso da estudante mineira Carolina Arruda Leite, de 27 anos, mobilizou a internet, depois que a jovem abriu uma vaquinha online para financiar uma viagem à Suíça, onde pretende se submeter a uma eutanásia. O motivo para a graduanda em veterinária buscar a morte assistida é a convivência há 11 anos com a neuralgia do trigêmeo, dor incapacitante em um nervo da face. Com a repercussão do caso, muita gente passou a se perguntar o que é essa doença e de que forma é possível tratá-la.
Na Bahia, neurologistas utilizam desde terapia à base de medicamentos, até técnicas como aplicação de botox e cirurgias, para amenizar o sofrimento de quem tem o problema, que é bastante raro. Segundo o neurocirurgião Leonardo Avellar, que coordena uma equipe no Hospital Geral Roberto Santos, a doença atinge de quatro a cinco pessoas a cada 100 mil. O HGRS realiza cirurgias para tratar a neuralgia do trigêmeo em pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS).
“É uma dor absurda e há casos, inclusive, do paciente bater a cabeça na parede de tanta dor. Chamamos essa dor de paroxística [desencadeada por estímulos ou toques na face ou na boca e dentes]. E ela vem numa onda absurda, com surtos e crises, em algum ponto facial. Tende a piorar com o tempo, se não tratada”, afirma o médico.
Carolina Leite já arrecadou mais de R$100 mil para a viagem à Suíça, mas esta semana, novas possibilidades se abriram para a jovem, que passou a receber ajuda de médicos e centros especializados em dor, sensibilizados com o seu caso. A situação da mineira também é bastante rara, pois afeta os dois lados da face, quando o normal é a neuralgia atingir só um dos lados do rosto. Em casos bilaterais, como o dela, os especialistas desconfiam que pode haver outra doença envolvida.
Leonardo Avellar acrescenta que a neuralgia do trigêmeo pode atingir adultos jovens, como Carolina, mas é mais recorrente na faixa entre 50 e 60 anos. As mulheres, no entanto, são as mais afetadas, embora ele já tenha tratado de um rapaz de 28 anos acometido pela doença e que fez cirurgia para aliviar os sintomas.
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Cotidiano comprometido
A neurologista clínica Maria Clara Carvalho, da clínica AMO Saúde da Mulher, trata pacientes diagnosticados com neuralgia do trigêmeo com medicamentos em associação à toxina botulínica. Ela explica que, muitas vezes, o paciente com dor crônica tem dificuldade em aceitar que a dor pode ser tratada, o que de certa forma favorece o desespero. “Em muitos casos, os pacientes acreditam que a dor não tem cura, mas existem tratamentos que podem melhorar o conforto”, afirma.
As crises de dor podem ser desencadeadas por situações simples como se alimentar, beber água, fazer a barba, lavar o rosto, receber uma carícia na face, o que inviabiliza a vida social e o cotidiano dos atingidos. As ondas de dor aguda podem ocorrer a qualquer momento e diversas vezes por dia, deixando o paciente inseguro e tenso à espera da próxima crise, o que também compromete o humor e a saúde mental.
“Os episódios são de curta duração, mas podem ocorrer muitas crises ao longo do dia. São crises rápidas, mas incapacitantes, que interferem na qualidade de vida, na capacidade laboral, trazendo muitos prejuízos e um impacto na vida dos pacientes, provocando também um sofrimento emocional muito grande”, pontua o neurologista Ricardo Alvim, chefe do setor de neurologia do Hospital Mater Dei Salvador.
Nervo trigêmeo
O trigêmeo é o quinto nervo craniano e percorre os dois lados da face, se dividindo em três, daí o nome: o V1, na área da testa; o V2, da bochecha e nariz até o começo da boca; e o V3, restante da boca e área da mandíbula. “Geralmente, a dor ocorre mais nessa parte inferior do rosto, no V2 e V3”, explica o neurocirurgião Leonardo Avellar.
Muitas vezes, a pessoa começa a sentir um incômodo nesta área do rosto e chega a pensar que é algum problema dentário, procurando primeiro um dentista, antes de começar uma investigação maior, acrescenta a neurologista clínica Priscila Vieira, do Hospital Português, onde funciona um ambulatório especializado no tratamento de dores crônicas, a Clínica da Dor. A médica acompanha alguns pacientes com neuralgia do trigêmeo na unidade.
Priscila Vieira tem pacientes que fazem tratamento clínico e que também já tiveram indicação cirúrgica. “Um deles sofria com a dor provocada por compressão do nervo e teve uma boa resposta”, diz a médica.
Ela explica que a neuralgia do trigêmeo pode ser causada por compressão do nervo, seja por uma artéria próxima, um cisto ou tumor, mas há também casos em que a dor ocorre por alguma lesão não especificada.
Tratamento difícil
Os neurologistas ouvidos por A TARDE são unânimes em afirmar que o diagnóstico é essencial para que o tratamento adequado seja indicado. Esse diagnóstico é basicamente clínico, mas uma ressonância magnética pode ser pedida, principalmente quando há a desconfiança de compressão no nervo ou mesmo para descartar outras doenças neurológicas, como a esclerose múltipla.
O tratamento é feito a base de medicamentos anticonvulsivantes, como a carbamazepina, utilizada para tratar epilepsia, com moderadores de dores neuropáticas e, em alguns casos, antidepressivos. Analgésicos comuns e mesmo opiáceos, como a morfina, não surtem resultado.
“As dores de origem neuropática não são fáceis de ser tratadas. A questão com os medicamentos é que muitas vezes quando a dor do paciente é muito intensa, as doses precisam ser aumentadas e isso pode causar efeitos colaterais”, afirma a neurologista Maria Clara Carvalho.
O neurocirurgião Leonardo Avellar acrescenta que quando o paciente não tem boa tolerância aos remédios ou ao aumento da dosagem, a cirurgia pode ser indicada. Ainda de acordo com o especialista, um dos testes para a identificação da doença é farmacológico. “Fazemos o tratamento com a carbamazepina, por exemplo. E, geralmente, as dores da neuralgia do trigêmeo respondem bem ao tratamento com essa droga. Quando não há nenhuma resposta aos anticonvulsivantes, começamos a desconfiar que pode não ser neuralgia do trigêmeo”, explica.
Cirurgias oferecem respostas de 70% a 80% positivas para o paciente
Responsável por 85% da demanda de neurocirurgia na Bahia, conforme dados da Secretaria Estadual de Saúde (Sesab), o Hospital Geral Roberto Santos realiza desde 2020, a rizotomia percutânea por balão, para tratamento da neuralgia do trigêmeo. A unidade de saúde também oferece outras opções de cirurgia para melhorar a qualidade de vida dos pacientes afetados pela doença.
São, pelo menos, quatro a cinco procedimentos por ano, já que a incidência da doença é rara. A depender do quadro e da técnica utilizada, as cirurgias oferecem resultados de 70% a 80% positivos para o paciente, explica o neurocirurgião Leonardo Avellar.
O médico acrescenta que a rizotomia é a técnica mais utilizada em pacientes idosos e que têm baixa tolerância a cirurgias abertas e mais complexas. Nesse caso, o cirurgião vai inserir uma agulha sob a pele e chegar até o nervo, para lesioná-lo.
“Você pode aquecer a agulha e provocar uma lesão térmica naquele nervo para que ele passe a funcionar com menos eficiência e provoque menos dor. Pode fazer a rizotomia percutânea e inflar um balão para lesionar o nervo. A face fica dormente e quanto mais dormente, menos dor o paciente vai sentir”, diz.
No caso de uma cirurgia mais complexa, a técnica é fazer um corte atrás da orelha do paciente, na região da nuca, e chegar até o nervo. Esse método possibilita, por exemplo, que o cirurgião identifique se há alguma artéria pulsando perto do nervo e servindo de gatilho para as crises agudas de dor.
“Nesse caso, nós isolamos a artéria, como se criássemos um ‘airbag’ para amortecer e evitar o impacto da artéria no nervo. O resultado é muito bom e em 80% dos casos há chances, inclusive, do paciente não ter mais dor. Um paciente meu, de 28 anos, fez a cirurgia há mais de 15 e até hoje não sente dor. A pessoa pode passar 15, 20 anos ou até mais de alívio completo dos sintomas”, completa.
Mesmo quando não há uma artéria para afastar do nervo, o cirurgião pode proteger esse nervo e, nesses casos, há até 70% de chance de alívio dos sintomas, revela o especialista do HGRS.
“Outra opção é você provocar uma lesão intra-cirúrgica nesse nervo, o que também gera uma resposta positiva acima de 80%. É possível, ainda, utilizar uma radioterapia cirúrgica, usar eletrodos e outros mecanismos para impedir a conexão do nervo, interromper essas funções do nervo para impedir que ele continue sensibilizando e causando dor. A qualidade de vida do paciente melhora”.
Tratamento de dor crônica exige cuidar também do emocional
Fatores emocionais não desencadeiam as dores neuropáticas, como a neuralgia do trigêmeo, mas podem piorar o quadro, diz a neurologista Priscila Vieira. Por conta disso, a qualidade de vida do paciente é importante, acrescenta a médica.
“Principalmente porque a dor é muito forte e pode causar ansiedade e depressão. Alguns pacientes têm uma resposta melhor a determinado tipo de tratamento, outros têm uma resposta mais lenta ou não respondem e é preciso buscar outras alternativas de tratamento. E tudo isso gera desgaste no paciente”, afirma a especialista.
O emocional descompensado tanto pode agravar a dor sentida quanto, por causa da dor persistente, a saúde mental do doente também ser afetada. “É muito importante lembrar que quando se trata de dor crônica, existe o tratamento da dor e existe também cuidar das questões emocionais e garantir o bem-estar do paciente, a qualidade de sono, da alimentação, atividade física. Porque a ausência desses cuidados pode potencializar o aumento da dor e da percepção da dor”, explica a neurologista clínica Maria Clara Carvalho.
A médica acrescenta que isso ocorre porque a percepção da dor está relacionada também com os neurotransmissores ligados ao estresse e ao bem-estar do indivíduo, como a noradrenalina e a serotonina.
“A qualidade de vida interfere na dor crônica porque a dor é algo que tem aspectos também subjetivos. Para o controle da doença, a pessoa precisa manter atividade física, dormir bem e tratar a ansiedade, porque o excesso de dor pode causar ansiedade, depressão e isolamento social”, acrescenta o neurologista Ricardo Alvim.
O especialista explica que, geralmente, uma equipe multidisciplinar, com psiquiatra e fisioterapeuta, atua junto com o neurologista para buscar a redução da intensidade das dores. “Trata-se de uma terapia complementar ao trabalho do neurologista”, diz.
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